segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

A coragem de dizer "não", artigo de Ana Echevenguá e Renata Covalski



Este artigo foi escrito com emoção e publicado em 18 de outubro de 2008. Após a intervenção policial, Nayara – ferida com um tiro no rosto - deixou o apartamento andando. Heloá, com tiros na cabeça e na virilha, teve morte cerebral. O criminoso foi condenado à pena de 39 anos e três meses de prisão.
Já estamos no final de 2015 e a violência contra a mulher não apresentou ainda mudanças positivas...  sabe-se, no entanto, que as  mulheres vítimas de violência doméstica estão vencendo o medo e denunciando os agressores.


A coragem de dizer "não"



Ana Echevenguá e Renata Covalski

Homem e mulher são iguais perante a lei? Sim, claro! Peraí; quer dizer, nem tanto... Neste momento, em Santo André-SP, um homem (Lindenbergue) mantém em cárcere privado duas mulheres (Heloá e Nayara, ambas com 15 anos de idade). Por quê? Porque Heloá decidiu romper o namoro. A coragem de dizer não despertou a ira de mais um “Pierrô Apaixonado” que, em nome do amor, sente-se no direito de prender, bater, matar... 



Mais um crime de amor? Bah! Que amor é esse? Aquele que "foge a dicionários e a regulamentos vários", na poesia de Carlos Drummond de Andrade?

O caso da Heloá é o exemplo da hora. Quantas vezes por dia as mulheres são vítimas da injustiça e da arbitrariedade?

Em 2001, apuraram que 2,1 milhões de mulheres sofreram espancamentos graves no Brasil. Ou seja, a cada 15 segundos, uma mulher foi espancada no Brasil. Em 2008, o número deve ter triplicado. É ou não é uma guerra silenciosa, geralmente travada dentro das quatro paredes do “lar, doce lar”?

Provavelmente, alguns vão responder que a coisa não é bem assim...

Ora, chega de tanta hipocrisia! A consciência, os direitos e/ou a moral feminina, para muita gente, ainda são considerados inexistentes. É, sim, uma guerra civil cuja violência real contra a mulher é fomentada pela indiferença da sociedade a esses crimes. E, também, pela cultura da impunidade dos agressores.
Na Idade Média, muitas foram consideradas bruxas, e queimadas em praça pública porque seu comportamento não agradou à classe dominante. Ora, estamos no século XXI e a coisa parece não ter mudado: somos punidas -  até com a morte - sem julgamento justo. E ao nosso algoz são concedidas várias atenuantes aos “crimes passionais” que comete, inclusive o direito à defesa da honra manchada.

Por quê?

Porque a mulher ainda é vista como um objeto: uma cadeira que pode ser quebrada, um móvel velho que deve ser trocado por outro mais novo.

Quando ela é um objeto sexual, recai sobre ela, SEMPRE, a responsabilidade dos crimes contra a liberdade sexual. No entender de alguns operadores do direito, ela seduz, induzindo o macho a cometer atos de violência e de abuso sexual. E esta indução ao abuso sexual é alimentada pela mídia que geralmente expõe a mulher como o prazer sexual visual disponível no bar, no elevador, no local de trabalho, nas ruas... Basta analisarmos os anúncios de alguns produtos: o que fulmina o marasmo de um dia-a-dia de trabalho? A visão de garçonetes com corpos esculturais no boteco da esquina; um encontro com a “colega gostosona” no final do expediente...

Os programas de televisão não fogem à regra: “mulheres gostosas” são apresentadas como burras e inocentes que incentivam ou aderem aos apelos sexuais do macho protagonista.

Apesar do surgimento das delegacias de polícia para as mulheres, os dados sobre a violência contra a mulher ainda não representam a nossa realidade. A Organização Mundial de Saúde apurou que cerca de 20% das mulheres são vítimas de violência física ou sexual durante a vida. Para a Anistia Internacional, esse número pode chegar a 33%.

E vocês sabem quantas mulheres têm coragem de denunciar um crime de estupro, por exemplo? Poucas. A dor, o constrangimento, o dano moral provocados pela agressão sexual é tão grande que algumas não revelam estas situações nem para as amigas mais íntimas. Gostariam de deletar da memória que um dia foram agredidas ou abusadas sexualmente.

Assim, carregam, em silêncio, traumas permanentes que geram mudanças de comportamento, até mesmo na vida sexual.

O pior disso tudo é que muitas de nós -  mulheres - somos coniventes com esta situação. Acostumamo-nos com as agressões cotidianas; rimos das piadas machistas; cantamos “um tapinha não dói”; batemos palmas pra “artista” que posou nua na Playboy... como vivemos no país do turismo sexual, ficamos insensíveis ao vermos meninas entregues à prostituição, servindo de pasto sexual a “consumidores” estrangeiros com dinheiro no bolso.

Portanto, chegou a hora de dizer não ao medíocre papel de “objeto sexual”  que a sociedade nos impôs na novela da vida. Este é o primeiro passo para garantir a integridade física e psicológica das nossas filhas, netas e de tantas outras mulheres que amamos...

Ana Echevenguá, advogada ambientalista, coordenadora do programa Eco&Ação, presidente da ong Ambiental Acqua Bios, e- mail: anaechevengua@gmail.com

Renata Covalski, filósofa e pesquisadora, e-mail: renatacovalski@yahoo.com.br

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