terça-feira, 19 de maio de 2020

Casar pode dar certo?, por Ana Echevenguá




“Se me faltares, nem por isso eu morro, se é pra morrer quero morrer contigo, Minha solidão se sente acompanhada, Por isso às vezes sei que necessito teu  colo,  teu colo,  eternamente   teu colo.” (Iolanda - Pablo Milanés, versão de Chico Buarque)

João está triste. Ele foi levado à separação devido à “falta de companheirismo” da esposa. 

E eu passei a divagar sobre o tema: essa é uma justa causa para desfazer um casamento?; faltou companheirismo ou faltou também amor, paixão, respeito, enfim, o afectio societatis (vontade de permanecer associado a outra pessoa...? 

Não sei. Talvez nem João saiba.

Separar é uma das consequências previsíveis de um relacionamento. Os laços se atam e se desatam. E o comportamento racional é acatar a vontade manifesta do cônjuge que deseja romper os vínculos, abandonar o barco, ...

“Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter
Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado” – Chico Buarque

Claro que nem sempre a aceitação é mansa e pacífica. Na semana passada, por exemplo, um marido matou a mulher na frente dos filhos porque ela queria a separação: puniu-a com a morte após o manifesto interesse em extinguir a sociedade conjugal. 

“Se, ao te conhecer, dei para sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir” – Chico Buarque e Tom Jobim

Afinal, quais são os deveres do casamento?

Casamento é uma pequena sociedade, com vigência por prazo indeterminado, entre duas pessoas com interesses comuns. Implica direitos e deveres mútuos. Exige investimentos (não somente financeiros) diários para ‘manter a liga’ e obter êxito. 

Mas quais são os deveres do casamento? Eles não estão explícitos no respectivo contrato. Ficamos imaginando as regras do jogo (isso se aplica também à união estável, que ao casamento se equipara).

No Brasil, as normas vigentes preservam o casamento, a união estável... E a separação judicial sem justa causa, via de regra, deve ser consensual. Para a Lei 6.515/1977, a separação litigiosa só ocorre se um cônjuge “imputar ao outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento e tornem insuportável a vida em comum”. 

Talvez essa proteção à vida-a-dois tenha se materializado porque “amar supõe evoluir todos os dias, conhecer o outro cada vez melhor, construir com ele um lugar no mundo em que as pessoas, ao entrar, sentirão que ali existe vida, carinho sincero, vontade de acertar”; palavras do psicanalista Roberto Shinyashiki. 

A falta de companheirismo, então, pode configurar violação aos deveres do casamento e tornar insuportável a vida em comum? 

Eu e meu amigo João entendemos que sim. Embora no dicionário Aurélio, seu significado se resuma a ‘aquele que acompanha’, companheiro é cúmplice, é alguém que respeita, orienta, cuida e que, acima de tudo, investe positivamente no nosso sucesso. Se um dos sócios não mais dispensa este tratamento ao outro, pode estar cometendo injúria grave. E não mais poderemos falar em suportabilidade da vida em comum.

Casar pode dar certo?



Para Shinyashiki “todos os seres humanos possuem um grande objetivo na vida: viver em estado de pleno amor”.

Claro que não há fórmula mágica para a perpetuação das sociedades. E uma relação-a-dois envolve regras ímpares como o envolvimento sexual sem o mero intuito de procriar. Relegar esse aspecto pode implicar a falência da sociedade. Devido à sua relevância, a lei trata a conjunção carnal como um dever marital. 

Leonardo Boff, em seu artigo “Como não perder o rumo certo”, diz que “não se pode construir nenhuma sociedade minimamente humana assentada sobre a falta de cuidado, de justiça e de igualdade”. E que “Uma sociedade precisa da generosidade, da cooperação e do diálogo, da comunicação livre, numa palavra, daqueles valores que constroem a felicidade social”. 

Boff não está se referindo às relações matrimoniais ou similares. Mas seus argumentos são aproveitáveis a essas. 

As pessoas não se associam somente porque têm afinidades entre si; associam-se porque lhes convém o empreendimento. E precisam, para não perder o rumo certo deste, aplicar capital econômico e humano.  Ou seja, precisam alimentar cotidianamente a vontade de manter a sociedade.

Talvez, desta forma, os sócios-amantes possam consolidar os versos que o poeta cubano Pablo Milanês fez à sua Iolanda: “Quando te vi, eu bem que estava certo De que me sentiria descoberto A minha pele vais despindo aos poucos Me abres o peito quando me acumulas De amores, de amores, eternamente de amores...”.




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